Quando a solidariedade é o prato forte
Lisboa, numa tarde soalheira de sexta-feira. Na zona de Sete-Rios, perto do Jardim Zoológico, a azáfama é grande. Está a ser ultimada a preparação das refeições que serão distribuídas nessa mesma noite aos sem-abrigo e famílias carenciadas da capital. Ao mesmo tempo, descarrega-se a carrinha que acaba de chegar do Pingo Doce mais próximo com alimentos doados. Irão ser utilizados para preparar o jantar do dia seguinte, ou então vão ser escolhidos para compor pequenos cabazes alimentares destinados a quem mais precisa. E assim é, todos os dias, um pouco por todo o país.
O Centro de Apoio ao Sem Abrigo, mais conhecido por CASA, é uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) fundada em 2002 que opera de norte a sul de Portugal Continental, estando também presente na ilha da Madeira. O CASA ajuda pessoas em situação de risco social, que se encontrem em situação de sem-abrigo ou integrem famílias carenciadas. O trabalho da associação depende da ação dos voluntários que ajudam as equipas a recolher e a distribuir alimentos e bens essenciais por instituições de apoio social, mas também pela população sem-abrigo. Todos os dias, o CASA apoia 7.000 pessoas.
À conversa com Nuno Jardim
Estivemos à conversa com Nuno Jardim, diretor-geral do CASA, que nos contou como tudo começou.
- Quando é que este projeto começou?
O projeto CASA foi fundado em 2002. Depois de um interregno, retomámos em 2007 toda a atividade. Desde esse momento, e até agora, têm sido 365 dias por ano, sem falhar, sempre a trabalhar, sempre a crescer, com cada vez mais delegações – atualmente são dez.
- Quantas pessoas fazem parte deste projeto?
A nível nacional já temos alguns quadros, cerca de 40 pessoas a trabalhar a tempo inteiro. Em Lisboa, na sede, estão cerca de 20 pessoas a trabalhar a tempo inteiro. A nossa organização tem delegações espalhadas pelo país, com coordenação, gestão e autonomia próprias.
O apoio através da alimentação é um projeto que queremos manter, porque se as pessoas deixarem de ter um foco na sobrevivência poderão “ter cabeça” para conseguir fazer outras coisas.
- Qual é a vossa área de atuação?
Nós temos um projeto de apoio a pessoas em situação de sem-abrigo, e um projeto de apoio a famílias. Este último chamado CASA Amiga. Em ambos os projetos existe uma base comum, que é a alimentação. Assumimos esse apoio de primeira linha que é bom para as pessoas e é também uma forma de chegar a elas. Agora já temos outras valências: locais de alojamento, equipas técnicas a funcionar… As coisas começam a entrar noutra dimensão. O apoio através da alimentação é um projeto que queremos manter, porque se as pessoas deixarem de ter um foco na sobrevivência poderão “ter cabeça” para conseguir fazer outras coisas.
- De onde vos chegam os alimentos?
Os bens alimentares chegam-nos de diversas fontes. Temos recolhas anuais nas lojas Pingo Doce, temos os excedentes alimentares que recebemos diariamente de diversas lojas – por exemplo, os produtos que estão no fim da validade ou os frescos que têm de ser utilizados no próprio dia. Nós vamos recolher à loja, trazemos, fazemos uma triagem e os alimentos são depois canalizados para confeção ou para famílias. Depois há outros apoios, como o apoio de pessoas particulares ou de outras empresas que gostam de ajudar com alimentos. Temos agora alguns apoios a nível autárquico, destinados à compra de alimentos para locais específicos.
- Em certa medida, muito daquilo que seria considerado desperdício acaba por ser para vós uma “matéria-prima” para trabalhar, um recurso que acabam por precisar diariamente.
Sim. Diariamente recebemos frutas, legumes, lacticínios… muitos alimentos que ajudam a criar uma “base alimentar”, para além dos produtos secos como arroz, massa e feijão.
- Costumam preparar aqui muitos pratos? Quantas pessoas trabalham na cozinha?
Nesta altura aumentámos um pouco o número de pessoas e temos dois a três cozinheiros, dependendo das horas. Há uma equipa mais alargada para recolhas, armazém e confeção dos kits. Atualmente, em Lisboa, estão a ser confecionadas cerca de 800 refeições diárias.
Confeção de refeições diárias na cozinha das instalações do CASA em Lisboa.
Confeção de refeições diárias na cozinha das instalações do CASA em Lisboa.
Confeção de refeições diárias na cozinha das instalações do CASA em Lisboa.
- Sentem que há muitos pedidos de apoio ainda hoje?
Houve um boom muito grande em 2008, mas depois as coisas foram ficando mais estáveis. Nos últimos tempos começaram a aparecer mais pedidos de ajuda, mais pessoas na rua, e mais pessoas a virem buscar alimentos ou outros tipos de apoio. Portanto, eu diria que sim; que este não é um fenómeno que tende a baixar, pelo contrário, tem tendência a crescer, e novos apoios vão ser necessários, para além da alimentação.
- São as pessoas que vos contactam diretamente ou é o CASA que as procura?
Regra geral, as pessoas vêm ter connosco. Ou são outras instituições ou autarquias que nos contactam porque alguém lhes pediu ajuda e eles encaminham-nos as pessoas, se nós tivermos possibilidade de ajudar. Nós vamos, sim, à procura das pessoas que estão na rua, porque em situação de sem-abrigo é diferente. Fazemos todos os dias um circuito de distribuição de refeições e acabamos por ir ter com as pessoas.
- Quando começou esta relação com o Grupo Jerónimo Martins, e em que é que se baseia esta relação?
A relação com o Grupo Jerónimo Martins começou em 2013, precisamente quando nos mudámos para as novas instalações. O Grupo estava em processo de perceber como trabalhar o desperdício alimentar e gerir todos os excedentes que as lojas tinham no dia a dia. Desde 2013 tem sido uma colaboração regular. Tem havido uma relação a ser construída e cada vez mais próxima. Jerónimo Martins acaba por ter um papel muito importante e preponderante na atuação do CASA, pela ajuda diária. Este projeto é a nível nacional, não estamos a falar somente de Lisboa, é um país todo a ajudar-nos diariamente. Representa de facto uma fatia muito grande. A partir daí, conseguimos dar apoio a cerca de 7.000 pessoas pelo país. Neste momento, cerca de 60% do trabalho vem de produtos doados pelo Grupo Jerónimo Martins, nomeadamente pelo Pingo Doce. Não contabilizando as doações nem as campanhas de loja, o que o Grupo nos dá por ano, através das lojas do Pingo Doce, ronda o milhão de euros, só em excedentes alimentares.
- Qual o impacto da pandemia no trabalho do CASA?
Nesta altura de pandemia conseguimos nunca deixar de trabalhar e felizmente não parámos nenhum dia. Todas as delegações conseguiram estar a funcionar, mas obviamente houve condicionantes. Houve funcionárias que não puderam, que tiveram de ficar em casa com os filhos, ou porque eram grupos de risco e tinham de ficar. A nível do nosso principal recurso, que é o voluntário, houve também uma redução muito grande e ainda por cima os nossos voluntários têm os seus empregos e tiveram que ficar mais resguardados e em casa. Redefinimos todo o processo de trabalho de rua, do trabalho de auxílio às famílias, adicionámos apoio e tivemos mesmo de fazer algumas contratações. Basicamente o que fizemos foi minimizar o contacto com as pessoas, permitindo que tivessem sempre acesso à ajuda.